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O Poder da Estupidez

Segunda parte

Por Giancarlo Livraghi
gian@gandalf.it
Setembro de 1997

Versão em português de Maranhão Barros
orfeummb@tcu.gov.br
Abril de 2003



Depois de quinze meses, meu pequeno ensaio sobre a estupidez parece estar em pleno vigor na rede. Ele está sendo reproduzido e citado em vários textos e eu estou recebendo e-mails de várias partes do mundo. O diálogo que se seguiu à divulgação me levou a descobrir pessoas muito interessantes, e também alguns sites que eu ainda não conhecia.

Várias perguntas e comentários me levaram a pensar mais um pouco sobre este intrigante e aterrador tema. Aqui está o “humilde resultado” dessas reflexões.


É “certa” a definição de Cipolla?

Nos primeiros passos de minha aprendizagem, tive a sorte e a satisfação de contar com mestres que me ensinaram alguns princípios que, apesar dos muitos anos, ainda permanecem firmes em minha mente.

Um desses princípios filosóficos é que não há essa coisa chamada verdade “absoluta” . Uma teoria “verdadeira” é simplesmente a mais conveniente diante das circunstâncias, é aquela que melhor explica e interpreta o que estamos estudando.

Não sei qual é a definição categórica de estupidez, aquela que não se pode contestar – ou mesmo se existe uma que faça sentido. Não sei tampouco de qualquer definição de inteligência realmente adequada.

A beleza da definição de estupidez (ou inteligência) de Carlo Cipolla (creio) é que ela não se funda em conceitos abstratos, mas em resultados: uma pessoa ou um comportamento é estúpido ou inteligente dependendo do que aconteça. Isso traz duas vantagens. A primeira é que define uma pessoa (e o comportamento dela) como estúpida (ou inteligente, infeliz ou bandida) com base nos fatos – ou pelo menos com base no nosso entendimento e definição dos fatos. A segunda, porém de maior importância, é que focaliza o fator essencial: não a estupidez por si mesma, mas os danos que ela causa.

Talvez existam inúmeros tipos de comportamento que são – ou parecem ser – “estúpidos”, mas que são inofensivos. Eles estão localizados próximo a linha neutra do gráfico de Cipolla – e de fato pertencem a essa categoria.

Por exemplo: participar de uma diversão com amigos e rir alto pode parecer “estúpido” aos olhos dos outros, mas, de acordo com a Teoria de Cipolla, tal comportamento é provavelmente classificado como “inteligente”. E de fato é, vez que a alegria da diversão compartilhada é maior que os inconvenientes ou aborrecimentos causados aos demais. De modo geral, a inteligência (ou a vantagem prática) de tal comportamento, limita-se a um momento de bom humor, mas muito freqüentemente provoca também efeitos mais importantes, gerando idéias e estimulando a cooperação, o que não seria possível em um ambiente tedioso.

Uma pessoa ridícula ou “maluca” pode ter uma extraordinária inteligência, enquanto uma pessoa “sisuda” pode ser bastante estúpida, em parte porque o pensamento criativo é, com freqüência, visto como ridículo ou “maluco” pelas pessoas que não o entendem.

Isso nos remete ao importante tema da relevância do pensamento não linear (assim como a emoção e o humor) em todos os processos mentais e, em especial, no processo criativo. Para discutir esse assunto com clareza eu precisaria de muito mais espaço do que há disponível neste site. Permita-me dizer, porém, que a distinção entre o modo de pensar com a parte esquerda e o com a parte direita do cérebro pode ser interessante para experimentos clínicos, mas, ao meu ver, deveria ser evitada na observação do comportamento humano de modo geral. A razão é que a estrutura do ato de pensar não é tão simples assim, e, em todos os casos, os processos de percepção e de pensamento funcionam sempre juntos e são mais bem entendidos se vistos como um todo, e não como a soma das partes separadas.


Os Três Corolários

Pouco depois de ter lido sobre as Leis de Cipolla, elaborei o que em minha mente apareceu como o “Primeiro Corolário de Livraghi”. Então, me dei conta de que não poderia chamá-lo de “primeiro”, porque havia somente um. Entretanto, minha intuição inicial estava correta. Descobri, depois, que existem pelo menos três. Aqui estão eles:


Primeiro Corolário:

Em cada um de nós há um fator de estupidez, que é sempre maior do que supomos.

(Esse eu expliquei em meu artigo original sobre “estupidez”)


Segundo Corolário

Quando combinadas, a estupidez de várias pessoas juntas cresce geometricamente, pela multiplicação – e não pela adição – dos fatores individuais de estupidez.

Uma idéia geralmente aceita é que “a quantidade de possíveis inter-relaçöes entre membros de um grupo de pessoas aumenta proporcionalmente ao quadrado da quantidade de membros”, e parece muito óbvio que o mesmo critério se aplica à combinaçâo dos fatores individuais de estupidez. Isso pode ajudar a explicar o fato bem conhecido de que multidöes como um todo sâo mais estúpidas do que um indivíduo isolado da multidäo.


Terceiro Corolário:

A combinação da inteligência de várias pessoas tem um impacto menor que a combinação da estupidez, porque (Quarta Lei de Cipolla) as “pessoas não estúpidas sempre subestimam o poder de causar dano que as pessoas estúpidas têm”.

A estupidez não tem cérebro – não necessita pensar, organizar-se ou planejar para gerar um efeito combinado. A transferência e harmonização da inteligência é um processo muito mais complexo.

As pessoas estúpidas podem reunir-se instantaneamente em uma massa ou em um grupo super-estúpido, enquanto que as pessoas inteligentes só são efetivas em grupo quando se conhecem bem e têm experiência em trabalho de equipe. A criação de grupos bem sintonizados de pessoas que compartilhem a inteligência pode gerar forças anti-estupidez razoavelmente poderosas, mas (diferente da aglutinação de estupidez) essas pessoas necessitam planejamento organizado e acompanhamento; e podem perder grande parte de sua efetividade com a infiltração de pessoas estúpidas, ou pelo surgimento inesperado de estupidez em pessoas que agem de forma inteligente em qualquer outra atividade.

Em algumas situações, parte desses perigos podem ser evitados (se bem que não se pode controlá-los totalmente) por meio da conscientização de que há um problema em potencial, antes que qualquer coisa de ruim aconteça, e também pelo cuidado de manter “inteligência de reserva” no grupo (ou em qualquer equipe em operação), para preencher as lacunas e corrigir os erros, antes que o dano seja sério demais. Qualquer bom capitão de veleiro sabe o que eu quero dizer, como também o sabe qualquer pessoa experiente em situações onde a relação causa-efeito seja imediata, direta e tangível.

As comunidades com um elevado fator de inteligência têm provavelmente um maior potencial de sobrevivência a longo prazo. Mas, para que isso seja efetivo, deve-se evitar os mais imediatos e potencialmente devastadores impactos da estupidez compartilhada, que (infelizmente) pode causar danos substanciais a grande número de pessoas não estúpidas antes que se auto-destrua.

Outro elemento perigoso na equação (como apontou Carlo Cipolla) é que a máquina do poder tende a colocar “bandidos inteligentes” na ponta da pirâmide (e algumas vezes mesmo “bandidos estúpidos”). Esses, por sua vez , tendem a favorecer e proteger a estupidez e manter a verdadeira inteligência fora de seu caminho tanto quanto possível. Esse é, creio, por si mesmo, um importante tema. Pode ser que algum dia eu faça algum comentário a respeito (Anos depois eu o fiz em “A Estupidez do Poder”).


A estupidez e a biologia

O “problema da estupidez” não existe em um ambiente biológico básico. O processo se baseia na produção de um número extremadamente grande de mutantes “idiotas”. Pouquíssimos, apenas os mais bem “adaptados”, sobrevivem. É assim mesmo! Desse ponto de vista, o que vemos como uma catástrofe é tão somente outra variação no curso “natural” dos eventos. Os botânicos entendem a destruição por incêndios como um passo necessário, de fato desejável, na evolução de uma floresta. As milhões de criaturas vivas que sucumbem no processo poderão não concordar, mas suas opiniões são irrelevantes.

Desse ponto de vista, as solução são simples e muito efetivas. Se há gente demais, tudo o que precisamos é de outra calamidade (ou qualquer mecanismo de matança que não interfira demais como o ambiente em sua totalidade) que possa aniquilar 90 porcento da população. Os dez por cento que sobrevivem, tão logo se refaçam do choque, provavelmente considerarão bastante aceitável o ambiente resultante. Provavelmente são também geneticamente semelhantes: compartilhando aspectos específicos de aparência e de atitude. Se todos têm cabelos verdes, ou olhos cor de rosa, e gostam de clima úmido, logo passam a considerar estranhos e inferiores os indivíduos extintos com qualquer outra cor de olhos e cabelos e os que gostam de clima seco e ensolarado, e então seus livros de história sobre a adaptação à umidade tratariam a maioria de nós como nós tratamos os Neandertais.

De uma perspectiva cósmica, a destruição ou esterilização de nosso planeta, pelo poderio nuclear (ou químico) criado pelo homem, ou pela colisão com algum meteoro errante, seria um detalhe irrelevante. Se isso acontecer antes do desenvolvimento das viagens espaciais e da colonização de outros planetas, o desaparecimento de nossa espécie (junto com o resto da biosfera terrestre) não causaria muita comoção, mesmo dentro de nossa galáxia.

Mas em um ambiente biológico especial onde certa espécie (tal como a nossa) se estabelece, o sistema é baseado na suposição de que o ambiente pode, e de fato deve, ser controlado; e que cada indivíduo em nossa espécie (e nas outras espécies que “protegemos”) é capaz de viver mais tempo, e mais prazenteiramente, do que seria possível em um ambiente não controlado. Isso requer uma categoria particular de “inteligência organizada”. Portanto, a estupidez, nessa fase e tipo de desenvolvimento biológico, é extremadamente perigosa.

Como somos humanos, precisamos nos preocupar com isso.


A estupidez e o “milênio”

Poucas coisas neste mundo são previsíveis com tanta exatidão como o fim do Século Vinte. Ele ocorrerá exatamente às zero hora, zero minuto e zero segundo do dia primeiro de janeiro, do ano 2001; e nós temos convenções que nos permitem acertar nossos relógios e cronômetros em cada um dos fusos horário, com a precisão desejada, seja para abrir uma garrafa de champanha, seja para utilizar um cronômetro sofisticado.

Mas há uma quantidade surpreendentemente grande de pessoas que pensam que o milênio terminará à meia noite do dia 31 de dezembro de 1999, quando, é óbvio, entraremos no ano dois mil. Mas, ainda estaremos no século vinte por mais um ano. Conheço muitas pessoas brilhantes e bem instruídas que só compreendem isso depois de um certo tempo. Coçam a cabeça e finalmente, apenas parcialmente convencidos, murmuram algo como “Hum, pode ser que você tenha razão. Aacho que nunca houve um ano zero”.

Não é estúpido?

De acordo com a definição de Cipolla, não é; porque é improvável que cause algum dano maior. Pode até nos encorajar a recordar nossas aulas de aritmética, ou levar-nos a uma dupla celebração. Caso não provoque muitos acidentes, significaria apenas que as pessoas teriam diversão em dobro e que os comerciantes ganhariam o dobro de dinheiro. No final da história, os resultados poderiam ser inofensivos, ou até mesmo “inteligentes”.

Mas, há um problema que pode nos afetar muito gravemente, no final do ano de 1999: o acerto dos relógios nos sistemas computadorizados.

Ouvi muitos comentários bastante idiotas sobre este tema. Tais como: “Ha ha ha, meu computador Mac vai se ajustar ao ano 2000 e o teu PC não vai” – ou “Por que tanto barulho? O número 2000 não é problema para o relógio do meu computador”.

Parece quase impossível fazer com que a pessoas parem e pensem sobre implicações além daquelas que afetam o computador pessoal. Não quero entrar em detalhes técnicos – esse não é meu campo e o deixo aos peritos. Aqui há um link para uma análise mais minuciosa dos “mitos e verdades” e varias opiniões diferentes sobre essa matéria. Pode-se debater eternamente, mas o tempo está acabando.

Em todo caso, parece haver bastante software velho, tanto em grandes sistemas computadorizados como em dispositivos pequenos mas vitais, para que se constituam um problema sério para muitas pessoas que nada têm a ver com os computadores. Um amigo meu, que é um especialista muito competente e brilhante em processamento de dados disse : “Tua cafeteira automática, teu relógio despertador e teu videocassete provavelmente não terão problemas com as datas; teu computador pessoal poderá funcionar bem na mudança de século, com alguns pequenos ajustes, mas, apesar da companhia OTIS se recusar em aceitar responsabilidades, em alguns lugares do mundo tu deves tomar cuidado ao tomar um elevador no dia primeiro de janeiro de 2000.”

Não creio que estamos indo ao juízo final. Suponho que nos próximos dois anos se encontrem soluções. Mas pense apenas um pouco sobre a seguinte hipótese: um sistema isolado, ou uma peça de equipamento, que não seja apropriadamente ajustado ou testado previamente, ou um controle de tráfico aéreo, ou um hospital, ou a mira automática de certo tipo de armamento – podemos realmente confiar que todas as pessoas envolvidas, em todos os cantos do planeta, farão suas tarefas adequadamente?

Não importa quão grande ou pequeno seja o problema, a estupidez faz parte de sua previsibilidade. O calendário Gregoriano foi estabelecido há 415 anos, muito antes que os artefatos modernos (eletrônicos ou de qualquer outra índole) fossem concebidos. Como pode alguém, não importa há quanto tempo, construir um computador, software, ou qualquer coisa que contenha um programa de contagem de tempo, sem considerar que certamente apresentaria um problema, caso não tivesse a capacidade de computar anos com dígitos além de 99? A apenas dois anos do prazo final, ainda se discute como se livrar dessa confusão.

Poderíamos nos esquecer da eletrônica e falar de muitas outras coisas. Por exemplo das pensões e aposentadorias. Em meu país (Itália) os programas de pensão são compulsórios e controlados pelo governo. Há algumas décadas já estava muito claro que a população envelheceria e criaria um sério problema. Ninguém fez nada a respeito. Muito pelo contrário, fizeram-se muitas coisas para agravar o problema: aposentadorias antecipadas, favores especiais a pessoas que não necessitavam nem mereciam etc. – em uma escala monstruosa. E agora estão discutindo sobre como resolver o problema.

O meio ambiente, a explosão demográfica, o uso da energia fóssil, a idiota rigidez hierárquica das organizações públicas e privadas (incluindo as escolas) em um mundo de crescente turbulência e complexidade; a “sociedade da informação”, o mundo ligado por redes informatizadas, tudo isso se constituindo em uma potencialmente poderosa ferramenta para os excluídos, mas conduzidos pelos desnecessariamente privilegiados na direção oposta.

São cegos conduzindo cegos, a estupidez está dirigindo o mundo. Para qualquer um que nos veja a partir do espaço exterior, poderia ser extremadamente engraçado. Mas de alguma forma não me faz rir.




O poder da estupidez – Primeira parte

Terceira parte – A estupidez do poder



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